segunda-feira, 22 de janeiro de 2018

Uma abordagem natural da morte


Estima-se que há aproximadamente 250.000 anos o Homo erectus deu lugar ao Homo sapiens. Isso significa que somente calculando desse período para cá (não estou considerando a multidão de hominídeos, seres estranhos, peixes e punhados de células que vieram antes), e pensando apenas nos pais e pais dos pais (homens), tenho por volta de 8.333 ancestrais homens, diretos, sendo que cada um era obrigatoriamente pai do outro. Estipulei que cada ancestral meu viveu em média 30 anos até se reproduzir – fui imprecisa a respeito de épocas duríssimas apenas para atender ao intento de facilitar a conta – e então dividi o número de anos em que parte dos meus genes circulou por homens Homo sapiens (250.000) pelo número de anos que estimei facilmente que cada um desses senhores viveu até engravidar alguém com um bebê do sexo masculino (30). 

O absurdo não para por aí. A conta mais correta matematicamente, que considera que cada um de nós tem 4 avós, 8 bisavós, 16 trisavós, 32 tetravós – e daí em diante é fácil ver que estamos numa progressão geométrica de razão 2 –, chega a um número de desmaio que é impossível. Mas é um número que, felizmente, não corresponde à realidade por causa do implexo da ascendência: “cada pessoa descende várias vezes do mesmo antepassado por linhas diferentes”. Não tenho como fazer o cálculo certo para estimar o número completo de ancestrais, por isso pensei: “pai, todo mundo só tem um, e posso chegar a algo se pensar somente no pai do pai, e no pai do avô, e no pai do trisavô, etc”. 

Esse cálculo grosseiro – meu pai, o pai dele, o pai do pai dele e assim sucessivamente até retrocedermos 250.000 anos – fez com que eu conseguisse o que queria: espantar-me com o resultado. Oito mil trezentos e trinta e três ancestrais homens da parte direta do meu pai. Todos eles nasceram, reproduziram-se e morreram. Recentemente, inclusive meu pai. Que colocado na ponta desse processo todo que moveu 8.333 homens (no mínimo) aparece como um sujeito seguindo a ordem natural das coisas. 

Meu pai morreu dia 20 de dezembro de 2017, aos 81 anos, em decorrência de uma queda da própria altura, que é a maior causa de morte acidental de idosos. Estava com um câncer de pele muito severo na cabeça, já fazia sessões de radioterapia, e um dia, delirando, teimou em ficar por mais de seis horas postado refazendo os curativos nos tumores, sendo que no último ano não conseguia ficar quinze minutos em pé. Todo esse esforço fez com que fraturasse a perna, caísse, fosse internado, tivesse um tromboembolismo pulmonar, adquirisse uma infecção generalizada e falecesse. Cheguei a Blumenau de manhã, ele morreu à noite. Nunca fui tão triste como nos dias 20 e 21. E não me poupei de sofrer no velório. 

Eu já estava preparada para tudo porque já vinha há algum tempo acompanhando a debilitação do meu pai, e ele já não era nenhum moço. De qualquer forma, a morte esperada é como alguém avisar que vai te dar um susto daqui a pouco numa sala escura: você sabe que está para acontecer, mas quando acontece ainda assim pode se assustar, pois não sabia que seria bem naquele exato instante que o inevitável viria. Passei todas as horas do velório sentada ao seu lado, olhando-o, tocando-o e pensando. Não atendi ninguém. Não entrei nas conversas que começaram depois de passadas algumas horas, quando os que chegavam e se impactavam iam se acostumando ao morto no salão e passavam a bater papo como se estivessem na sala de casa (entendo a posição, mas não quis participar dela). Sempre imaginei esse momento como de internalização e dor. E foi. Essa era a hora certa de sentir dor, de sofrer, de aproveitar o último dia com aquele corpo que perambulou tanto e no qual habitou alguém que amei muito. Poucos dias depois, eu já estava bem. Muito bem. 

Não leio Sêneca, Montaigne, Pascal, Schopenhauer para me entreter de modo travesso ou passar o tempo. Leio para aprender alguma coisa, e aprendo porque quero aprender. Leitores de autoajuda são, na maioria, um fracasso justamente porque não aprendem nada com o que leem. Às vezes o autor até é bem-intencionado, quer mesmo ajudar os outros sem pensar apenas no dinheiro fácil que esse tipo de escrita confere, mas seu leitor não colabora, e a prova é que o típico seguidor de autoajuda nunca encontra um texto que o transforme: está sempre lendo outro livro de autoajuda, e outro, e outro, mesmo que as lições sejam as mesmas com uma abordagem suavemente diversa. Bastaria um bom livro para ensiná-lo com fartura, mas ele lê cada lançamento e vai recomendando “porque são todos muito bons”. Depois de duas semanas tentando aplicar o que leu, os velhos maus hábitos voltam… até que apareça outro livro “com lições novas e incríveis!” que proporcionem mais duas semanas de farsa. O leitor constante de autoajuda contradiz a máxima de que não é possível entrar duas vezes no mesmo rio, pois atravessa cada leitura sendo praticamente igual ao que era na leitura anterior. Digo isso porque, apesar da belíssima escrita e da seriedade de filósofo (e não de motivador para grandes empresas), Sêneca, Montaigne, Pascal e Schopenhauer escreveram muita autoajuda. (Não é um tipo de autoajuda quando Schopenhauer diz que um homem nobre deve fazer questão da solidão?) E o que escreveram sobre a morte, e leio há anos, de fato me ajudou a entendê-la. 

Desde que entendi a morte, parei de tratá-la como algo distante, que não dissesse respeito a mim e aos meus. Quando conhecidos somem, cogito brevemente que tenham morrido, até como forma de aceitação prévia daquilo que não é de todo irreal. Também não ajo como se os que me rodeiam fossem eternos, vez ou outra penso que podem morrer sem aviso. Sei que para muitos isso é insensato, mas insensato seria se eu sofresse com a cogitação. Não penso na morte das pessoas que amo para sofrer de ansiedade, penso para incorporar como uma possibilidade da qual não escapo: se acontece a tantos, pode acontecer a mim. Sêneca disse sobre o sofrimento que se estende: “Porque é inútil enlutar-se se nada se consegue com o luto”. Concordei desde que li, mas era cômodo que eu pensasse isso enquanto não tivesse perdido ninguém. Meu pai morreu e vi que sofri pelo tempo que imaginava que deveria sofrer: abraçar a dor sem querer soltá-la não o traria de volta. 

Sempre me perguntei se a morte de uma pessoa amada colocaria à prova meu ateísmo. Minha convicção parece aumentar a cada temporada conforme amadureço – fico muito feliz em me ver caminhando para a racionalidade sadia, e tenho ciência de que ainda há muita jornada –, mas há ocasiões que nos põem em teste. Não falhei quando meu pai ficou doente – falharia na morte? Não. E mais: vi minha convicção ser ratificada e senti que ela me proporcionou a paz da razão que eu precisava. Numa breve entrevista à Veja, a geriatra Ana Claudia Quintana Arantes, conhecida por seu trabalho de aceitação da morte, disse: “O ateu costuma lidar melhor com a morte. Ele não culpa ninguém, não terceiriza as decisões. O sagrado para ele é a vida em si. Os que seguem uma religião podem querer barganhar com seu deus na hora H”. Não é como se eu tivesse perdido meu pai para outro patamar. Não é como se eu tivesse dívidas com ele e por causa delas ele fosse sofrer “no outro mundo” ou lamentar “Barbara, por que você iniciou aquela briga inútil num dia de verão de 2009?”. Ele viveu o que viveu, e viveu muito, e quem me dera poder viver por 81 longos anos como ele. Morreu de alguma forma, assim como morreram aqueles mais de 8.000 homens que o precederam. Acabou, e depois de tanto tempo vivendo bem conforme pôde. Na mesma toada, a morte põe à prova a fé dos que dizem crer. Esses, estranhamente, caem com muita facilidade. Quem me dera fantasiar que existe um céu maravilhoso com anjos encantadores para onde vão os mortos! Toda morte de alguém querido seria motivo de festa, de celebração, porque partir para o paraíso é a melhor das promoções após uma terra com fome, guerra, tortura, dores crônicas, palestrantes gratuitos de corredor e defensores de políticos corruptos. Como se explica que crentes sofram tanto a morte de seus estimados se dizem acreditar nos desígnios de Deus e na vida eterna? Por que sofrer por alguém que “está melhor do que nós”? Ora, vejam, de nenhuma perspectiva vale a pena se horrorizar com a morte: se você crê em Deus, deveria achar que Ele sabe o que faz e que tem uma poltrona reservada no céu para seus queridos; se você é ateu, a vida como fim em si mesma foi vivida da maneira possível, o sofrimento não trará ninguém de volta e não existem espíritos levitando para ouvir arrependimentos.

Cena do filme Amor (Amour, 2012), de Michael Haneke

Espero que ninguém entenda esse texto como uma forma de ostentação sobre como lidei bem com a morte do meu pai, mas como um incentivo à naturalização da morte, que é parte da nossa história enquanto animais que nascem, desenvolvem-se e em algum momento, por algum motivo, morrem. Compreendo que a estranheza e a dor da ausência possam ser insuportáveis para tanta gente. Lembro de ter lido, há muitos anos, um comentário do novelista Manoel Carlos sobre a morte de um filho: “É uma noite sem fim”. Essa fala me marcou tão fortemente porque consegui exercer grande empatia sobre a situação. Perder um filho deve ser uma dor dilacerante e nunca vi definição melhor para vestir aquilo que se sente a respeito da ausência de quem era parte de nós. Mas há tempo para o luto, e há tempo para superar o luto. Uma morte que não se supera é como uma segunda morte: tive uma tia que nunca aceitou a morte do marido e enlouqueceu, conheci uma moça que só falava sobre sua falecida mãe. Se aquele marido e essa mãe soubessem como ficariam essas pessoas, dificilmente teriam morrido em paz. Como é morrer quando se sabe que alguém precisa de você e vai viver muito mal sem você?

Lembro do meu pai todos os dias. Algumas coisas não ficaram esclarecidas em nossas vidas, mas evito qualquer grande martírio sobre o assunto, pois quando é que podemos garantir “se essa pessoa morrer, tudo estará resolvido entre nós, sem pendências”? Quando cheguei para visitá-lo no dia 20, no hospital, já não estava consciente por causa da forte medicação que tomava. Pedi para minha mãe perguntar ao médico se essa medicação era mesmo necessária na quantidade que era dosada. Ela disse que perguntaria na manhã seguinte. Fui para casa e me imaginei andando com meu pai de mãos dadas, só nós dois, num lugar muito calmo. Conversávamos tudo que eu planejava conversar no dia seguinte, quando meu pai estivesse acordado porque minha mãe teria pedido para o médico diminuir a dose dos remédios. E dormi imaginando isso. Uma hora após esses ensaios mentais, meu pai morreu. Dias depois, minha mãe e eu conversávamos sobre rádios e discos. Ela disse que meu pai pedia para que colocasse músicas românticas para tocar, e um dia ele teria dito: “A Barbara não gosta de músicas românticas, né?”. Meu estômago doeu. Desejei que meu pai pudesse voltar por um minuto só para esclarecer esse assunto bobo. Porque eu adoro músicas românticas, montei uma compilação chamada “Antena 1” só com músicas ótimas e muitas vezes românticas que tocavam no tempo em que a Antena 1 era boa, nos anos 90 – quando essa rádio tocava na minha casa porque meu pai punha para tocar. E tarde demais eu fico sabendo que meu pai esqueceu ou nunca prestou atenção nisso, que não sabia que eu aprendi a gostar de Air SupplyAmerica, Lou Rawls, Toto, Hall & Oates, Gino Vannelli, Madonna, Rupert Holmes, Elton John, Peter Frampton, Ph.D, Supertramp e até Zucchero porque as rádios que ele ouvia – Antena 1 e a extinta União – tocavam todas essas coisas. Quando eu falava de ABBA com ele, talvez achasse que era só para puxar um assunto do qual ele gostava. E houve também um longo período em que esse tipo de música não era ouvida em casa porque meus pais afundaram numa severidade católica que não dava espaço para “arte mundana”. Ao saírem do radicalismo, anos depois, provavelmente não vi necessidade de me mostrar uma discípula de meu pai para certos gostos, não vi necessidade de trazer a recordação “pai, lembra daquelas músicas que você ouvia antes de a Igreja fechar seus olhos para o mundo?”, e hoje uma coisa que me entristece é saber desse distanciamento que tivemos quando estávamos, na verdade, muito próximos. 

Fará sentido sofrer tanto pela morte quando o problema maior é criado por nós para nós quando alguém morre? Se uma pessoa não existe mais, não há o que ser feito. E provavelmente muitas das coisas que martirizam “os que ficam” nem passaram pela cabeça daqueles que estavam próximos da morte. Meu pai certamente não se preocupou ao achar que nossos gostos musicais eram diferentes. Nem pensou que isso precisasse de conserto antes que morresse. Hoje eu olho para suas fotos e sinto calma. Herdei dele a cor da pele, do cabelo, dos olhos, o formato dos olhos, as orelhas de cartilagem muito mole que podem ser dobradas e enfiadas no ouvido, os dedos (só o fato de serem tortinhos é herança materna), a vontade de criar, a curiosidade, um certo desligamento (que muitas vezes é defeito), o sono pesado, um jeito “é o que temos” de lidar com as adversidades. Meu pai não está tão morto. Muito dele vive em mim. E carrego isso para todos os lados.

***

NOTAS

1. No velório, muitos me disseram para me lembrar apenas das coisas boas. Bobagem. Essa conduta faz parte do processo que sempre critico de angelização dos mortos. É desonesto e patético. Meu pai não precisa se tornar um herói ou um santo porque morreu. Deixem que seja o que foi, um homem com qualidades e defeitos.

2. E também me disseram para me acalmar enquanto chorava demais. Entendo a boa intenção, mas não é no dia do falecimento que mais temos o direito de sofrer e chorar e tocar a pessoa amada pela última vez? Falavam para eu me acalmar como se estivesse chorando após um ano do falecimento. Por que não deixar que choremos muito nesse dia, que lamentemos sobre um corpo que há pouco estava quente? É o momento. 

3. Se você gosta de uma pessoa que vive, aprecia flores e acha que essa pessoa também aprecia flores, dê flores enquanto a pessoa está viva. Meu pai nunca recebeu flores de ninguém. Morreu e lá estavam três coroas de flores enormes que ele não poderia ver. As coroas são para o deleite dos olhos dos que ficaram? Aqui, uma piada que ele mesmo contava: “Um dia um japonês e um ocidental foram ao cemitério visitar os túmulos de seus respectivos falecidos. O ocidental levou flores, o japonês levou arroz. O ocidental perguntou, debochando: 'quando você acha que o falecido vai vir comer seu arroz?'. O japonês disse: 'quando o seu falecido vier cheirar suas flores'.”

4. Uma tia, irmã do meu pai, morreu há poucos anos. Sempre pensamos que morreria em decorrência do vício do cigarro. Indiretamente, foi o que aconteceu: saiu para comprar cigarros na padaria e na volta foi atropelada. Meu pai, fraco como estava, gerava em nós uma preparação para a morte em decorrência do câncer. Mas também morreu apenas indiretamente por causa disso: estava farto dos curativos nos tumores e resolveu refazê-los numa noite de delírio (causado, possivelmente, pela radioterapia). Em pé por muitas horas, fraturou a perna, caiu e não muito tempo depois morreu em virtude da queda. Ou seja, a morte está sempre nos espreitando. E pode nos pegar de maneira inusitada.