domingo, 26 de novembro de 2017

Notas sobre lugares: Blumenau, clima e outras coisas


Há um provérbio sueco que diz: “não existe tempo ruim, apenas roupas inadequadas”. Gosto dele porque incentiva a adaptação, conduta morta nestes tempos em que todo mundo é infeliz por qualquer coisa adversa. Divago (sempre divago quando invento de falar “destes tempos”). O que quero dizer é que o criador desse provérbio nunca passou um verão em Blumenau. 

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Blumenau é uma cidade úmida que fica no Vale do Itajaí, estado de Santa Catarina. Do Sudeste para cima a maioria do povo pensa que o Sul é uma Suíça, com friozinho o ano todo e fondue. Mas garanto por mim e pela fala de outros: o calor de Blumenau é um dos piores, se não o pior de muitas jornadas. Não há apenas calor, há mormaço. E o mormaço desmotiva o trabalho, aumenta a força gravitacional, rouba a humanidade. Meus piores desejos aos meus pares vieram quando eu voltava da escola ao meio-dia e fazia um longo trajeto no sol. Não por acaso, nessa época li O estrangeiro, do Camus. Tornou-se meu livro predileto por tantas coisas, e uma delas foi essa concepção de um homem matar outro por causa do sol. Passei vinte e cinco anos no mormaço de Blumenau, sei o que é ter vontade de matar alguém somente por causa do calor. 

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Um dia saí para festejar meu aniversário e tomei meu primeiro Negroni. Se um dia eu tiver câncer no esôfago, culparei com toda certeza aquele coquetel, que desceu como uma invasão viking. E se um dia eu tiver câncer de pele – já que o efeito maléfico do sol é cumulativo –, culparei com toda certeza minhas andanças em Blumenau na volta do colégio ao meio-dia. 

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Padrão de clima em Blumenau: de dezembro a maio, muito calor e mormaço, com tempestades no final da tarde que levam sacolas, telhas e árvores; de junho a setembro, frio com muita chuva, as roupas não secam, é muito fácil que tudo cheire a cachorro molhado, o mofo é o Demogorgon da cidade; outubro e novembro são os meses em que há forte expectativa para a próxima estação: “se já está assim, imagine no verão”. 

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Todo inverno era a mesma coisa: como a umidade estava no auge, os tecidos viviam molhados. Então antes de dormir eu passava a ferro minha cama, meu edredom e meu travesseiro. 

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Paulistanos são dramáticos com mudanças climáticas. Faz um calorzinho que jamais se comparará ao de Blumenau e eles passam o dia tecendo comentários e criando matérias jornalísticas diversificadas para provar recordes: “o dia mais quente de fevereiro dos últimos vinte anos”, “a semana mais quente dos outonos desde Maluf governador”. Bate uma brisa que jamais se comparará ao frio de alguns invernos em Blumenau (lembram, catarinenses, daquele inverno quando tivemos “os alpes da Palhoça”?) e eles, desesperados ou jecas, já estão de botas, casacos, cachecóis e gorros. Chuva para eles também é sinônimo de frio. Se chove lá fora em pleno verão, eles não saem sem casaco. Dirão, talvez, que é apenas receio da água batendo na pele. Pergunto-me como tomam banho. 

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“Como colonos alemães resolveram se estabelecer em Blumenau com esse clima?”, perguntou meu namorado ao passar seu primeiro verão mórbido na cidade. Vale lembrar que o Dr. Hermann Blumenau voltou para a Alemanha anos depois da colonização. Sábio ele. Tenho uma forte ligação com o lugar onde nasci, vez ou outra caio ébria num espiral nostálgico sobre tudo que vivi lá e não está mais (sou do tempo em que havia cinco alfarrabistas, sendo três Book Center e mais dois Querche: hoje há apenas um Book Center num salão que perdeu todo o ar intimista de sebo), mas não penso em voltar para morar. Não é por causa da mentalidade de germânico do interior, não é porque sempre tem gente estranha com aspecto maníaco perto do Angeloni da Fonte, não é porque as exposições de arte costumam ser uma droga. É simplesmente por causa do clima. 

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O comércio ajuda a refletir o tempo. Não há mais nenhuma banca de revistas na Rua XV de Novembro, a principal rua do comércio de Blumenau. Se você quer um jornal, deve comprá-lo no supermercado. No Shopping Neumarkt, três locais antigos e tradicionais fecharam esse ano: a Bruneti Discos, a confeitaria da Glória e a banca de revistas. Com isso, concluí que não existe mais nenhuma banca de revistas na região do Centro. Há dez anos elas eram várias. Agora, a cidade está transformada num terreno fértil para farmácias, lojas de produtos naturais e barbearias. Casinhas antigas com porão (!) vieram abaixo para que farmácias fossem construídas no lugar. Obviamente não gosto do que vejo. Faço parte do grupo de todas as pessoas que saem de suas cidades de origem e quando voltam para visitas reclamam que elas não são mais tão boas como costumavam ser. 

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Vou a Blumenau uma vez por mês. Em São Paulo me dizem: “ai, que gostoso”. Imaginam que farei tricô em frente a uma lareira enquanto saboreio pinhão cozido e bebo chocolate quente. Um gato preguiçoso vai se enroscar nas minhas pernas e depois se ajeitar delicadamente na almofada de veludo, onde é acariciado pela minha mãe, que está com luvas. Vamos à realidade: não faz nenhum sentido ter lareira em Blumenau, tricô só é feito no inverno, gatos deitam no piso frio aparentando enfarto por causa do calor e nunca, nunca vi minha mãe usar luvas. 

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Em São Paulo os médicos querem tratar especificamente as reclamações dos pacientes, ao que parece. Em Blumenau qualquer pessoa com três quilos de sobrepeso que vá ao SUS por causa de um resfriado receberá de bônus uma recomendação para que emagreça. Uma vez eu estava vomitando até o jantar de dias anteriores, fui a um posto de saúde, vomitei lá também. Na hora de ser atendida na triagem, a técnica de enfermagem, que viu minha situação, sentou-se na minha frente e lentamente calculou meu IMC. E me disse: “você precisa emagrecer pelo menos um quilo para entrar na situação de peso normal”. Infelizmente eu estava tão mal que tinha perdido minha veia sardônica. Podia ter dito: “se eu vomitar mais um pouco talvez consiga”. Cabe uma ressalva: esse tipo de atendimento a-gordura-é-a-causa-de-todos-os-males foi padrão no serviço público de atendimento, não vi a mesma coisa quando fui atendida em consultórios particulares. Já que em São Paulo nunca fui atendida no serviço público de saúde, não sei dizer bem como é o tratamento, talvez isso de que reclamei em Blumenau possa ser uma medida nacional recomendada pelo Ministério da Saúde: “não existe má hora para falar sobre perda de peso, toda hora é hora”. 

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Blumenau para mim é, pensando em épocas variadas, a finada Rádio União – meu pai costumava preparar o café da manhã ouvindo o programa que tocava música alemã tradicional, aquela com muita tuba e muito acordeon –, a Antena 1 – que hoje é apenas 30% boa –, a Rádio Atlântida – que hoje é puro horror –, os sebos, a Biblioteca Municipal com suas funcionárias sisudas para adolescentes (nunca me perdoaram as pontuais bagunças que eu fazia com amigos, não importa a quantidade de livros que eu tomasse emprestado), o cheiro de maconha aqui e ali nas ruas e matos, a Livraria Alemã (hoje fechada), a PROEB (hoje Vila Germânica), o euro dance nos anos 90 que eu captava dos sons alheios e adorava (Ace of Base, Gala, 2 Brothers on the 4th Floor), a luta entre os locais e os que imigravam, bares se transformando em igrejas, as festas juninas com cachorro quente com chucrute, os shows na “Prainha” aos quais eu nunca fui porque era muito criança (uma amiga mais velha viu Skank lá, e aqui eu gostaria de manifestar um sentimento que chamo de “inveja ao contrário”), o Parque Tupã, os cafés coloniais, a TV Galega, os paranaenses do interior formadores de guetos, o chimarrão diário e as rodas de chimarrão, os jogos de canastra, os velhos de chapéu que ficavam nos terminais de ônibus e arredores dando balas para meninas como pretexto para alisá-las, pessoas com deficiência descritas como “ele vai na APAE” (ninguém dizia “Fulano tem uma deficiência”, mas com o “Fulano vai na APAE” dava para entender tudo), a Rádio Menina e o boom de música gaúcha que vivemos, o Colégio Pedro II com seu uniforme inconfundível (entre os pobres havia algum frisson se alguém estudasse lá, mesmo sendo público), o Colégio SOS (que não existe mais), as histórias lendárias sobre túneis que levavam freiras para a danação da carne ou nazistas para encontrar outros nazistas, as histórias elaboradas sobre o Teatro Carlos Gomes ter sido feito como uma homenagem a Hitler (“dá para ver pelo formato da construção”), as histórias sobre o professor de História do Energia que era nazista (o mesmo que teve sua piscina com uma suástica no fundo fotografada por um helicóptero anos depois em Pomerode; seu filho “Adolf” estudou no mesmo colégio que eu por um tempo e era “uma sensação” com aquele nome e com aquele pai), os cursos na Fundação Cultural (foi lá que aprendi a tocar violão e a fazer cerâmica), a Rua Araranguá e a Rua Pedro Krauss rivalizando como os piores becos, o bullying em excesso nas escolas (principalmente nas públicas), as procissões das igrejas católicas, a popularidade da danceteria Rivage, a Sessão da Tarde passando nas lanchonetes, o comprar “massinha” na padaria (pão doce com farofa, basicamente), os alagamentos com as chuvas. Isso só para citar alguns exemplos. 

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Falo de Blumenau como a terra da umidade, mas este ano visitei Buenos Aires pela primeira vez e descobri que o nome da cidade só pode ser ironia. Os prédios são muito úmidos, você entra e é abraçado pela névoa. Nos restaurantes os guardanapos estavam sempre molhados, as paredes dos banheiros escorriam, às vezes colocavam um aquecedor no ambiente para ajudar a desumidificar, mas isso não contribuía com quase nada. Era frio. No calor, imagino que haja muito mormaço.

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Buenos Aires tem locais muito bonitos, mas é superestimada. “A cidade europeia da América do Sul” é um exagero. Algumas atrações turísticas são vãs: não entendo o que há de mais naquela flor metálica que abre e fecha na Praça das Nações Unidas. Já não existem moedas por causa da inflação. Qualquer comidinha custa muito para a nossa conversão. O Museu Nacional de Belas Artes, que é bom, tem entrada gratuita. O Museu Jorge Luis Borges é pequenininho e não muito convidativo, mas tem seu valor para quem gosta do escritor. Os ônibus parecem feitos para grupos de circo. Um livro que no Brasil custa por volta de 25 reais está por 100 reais na Livraria Ateneo, que só vale a pena para conhecer, e não para comprar alguma coisa. É assustadora a quantidade de cocô de cachorro nas ruas. Há construções antigas bonitas (em parte é por causa delas que chamam Buenos Aires de europeia), há parques bem cuidados, algumas ruas são agradabilíssimas. 

Ônibus à moda circense em Buenos Aires

Bairro de Palermo

Escultura "Centauro", de Antoine Louis Barye,
no Museu Nacional de Belas Artes de BA

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Falo mal da flor metálica que abre e fecha em Buenos Aires, mas ela não é das piores invenções de ponto turístico. No Brasil muitas cidades têm o hábito de construir grandes arcos nos centros ou nas fronteiras para que o turista considere aquilo como mais uma atração onde bater ponto e tirar foto. Não é bom sinal quando um desses arcos, que não fazem nada e sequer são bonitos, figuram entre “as 10 maiores atrações da cidade” segundo o Trip Advisor. A clara intenção disso é inflar o número de locais de visitação: “temos o rio, temos o museu da história da cidade, a pedra da inauguração… e temos os arcos”. 

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O pior frio que passei em viagens foi em Budapeste (Hungria), em janeiro de 2015. Muitas pessoas têm o hábito de pensar, consciente ou inconscientemente, “comigo isso não vai acontecer”. É assim que dirigem bêbadas, não usam cinto de segurança, lançam-se de paraquedas, fumam e exageram no consumo de açúcar. Comigo é o oposto, muitas vezes penso “é comigo que vai acontecer”. Casos bizarros e excepcionais de quem morreu engasgado com um pedaço de maçã me levam a comer mais devagar, em viagens de ônibus (mesmo se for de São Paulo a Santos) sempre uso o cinto, etc. No inverno de Budapeste, houve um momento em que achei que ia morrer de hipotermia. Estava no alto de um morro, de onde é possível ver toda a cidade e onde não havia local fechado para aquecimento. Mas minha indumentária de astronauta não bastou, e senti meus pés doendo muito e ficando duros de congelados. Então me lembrei do caso de pessoas que perderam pés ou mãos por causa do frio, e pensei “pronto, vou virar esse tipo de estatística”. Horas depois voltei ao normal, mas ainda temi um pouco possíveis consequências posteriores. Nem sempre é bom ter certos conhecimentos. 

Lençol de neve em Budapeste

Parte da cidade de Budapeste

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O pior calor que passei em viagens foi em Pompeia (Itália), em 2014. No meio das ruínas do vulcão e sem nenhuma proteção de telhados, o sol torrava a pele sobremaneira. Não é à toa que pessoas morrem no verão italiano por causa do excesso de calor. 

Um pedaço da destruída Pompeia

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Clima bom é o clima invisível, aquele que não gera muito falatório para pessoas normais – pessoas anormais sentem um assoprar e já começam a esfregar seus bracinhos e tagarelar sobre o frio, ou sentem um pouco de calor e começam a fazer trejeitos de quem vai explodir. Não gosto nem de lugares muito quentes, nem de lugares muito frios. Não vejo graça em “ver neve” e penso que é preciso um trabalho interior muito grande para aprender a gostar de tirar neve da porta de casa com uma pá (esse trabalho interior funciona, foi assim que aprendi a gostar de passar roupas). O clima bom permite o uso de roupas numa quantidade confortável: se está calor, uma bermuda e uma camisa, se está frio, uma calça e uma blusa. Nada de camadas de roupa que impedem a execução de movimentos, nada de quase nudez com peças de viscose e ainda assim sentindo vontade de se abanar. E já que o tal clima bom dificilmente acontece o ano inteiro, o melhor é se acostumar e naturalizar o que está dado. Hoje, com o mundo como é e com as pessoas como são, toda vez que entro num táxi tenho vontade de avisar: “boa noite; olha, o senhor pode ir pulando o papo sobre o tempo, pois que está calor e que vai chover no final da tarde todos nós já sabemos”. 

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Mas que o clima em Blumenau é horrível, ah, isso é.