domingo, 8 de outubro de 2017

Pesquisadores que são salsicheiros


Não somente o vento dos acontecimentos me agita conforme o rumo de onde vem, como eu mesmo me agito e perturbo em consequência da instabilidade da posição em que esteja.” 
Da incoerência de nossas ações – Montaigne em Ensaios

Muitas pesquisas acadêmicas são como salsichas: se quem as consome soubesse como são feitas, não as consumiria mais. A diferença na obstinação em continuar consumindo algo de péssima procedência é que as salsichas podem propiciar o câncer, enquanto os danos dos trabalhos acadêmicos feitos da costura dos restos menos nobres de animais humanos podem não trazer esse aviso de perigo mortal. “Não creio, uma má pesquisa pode matar.” É fato, só que más pesquisas endossadas por sérios estudiosos raramente – portanto, muito pontualmente – aparecem, são propagadas e matam. Foi o caso, dentre os contados nos dedos nas últimas décadas, da pesquisa que vinculou a vacinação ao autismo. Também é fato que esses casos pontuais provocam estragos que se arrastam por gerações: não é preciso andar muito longe no campo das redes sociais, que escancaram na praça as vísceras dos nossos conhecidos, para encontrar quem incentive uma nova revolta da vacina “porque os médicos, a indústria farmacêutica e os governos mancomunados querem que as crianças tenham autismo para que todos lucrem mais”. Não sou amigável à comunidade médica (psiquiatras principalmente), à indústria farmacêutica (passei anos sem gastar um centavo com medicamentos) e a governos (fora Lula, Dilma, Temer, Aécio, Gilmar Mendes, etc.), mas meu asco é muito maior a teorias conspiratórias, especialmente quando vindas (se é quem vêm de outro lugar) da cabeça de gente ignorante que não entende nada do assunto e sequer se deu ao trabalho de fazer uma pesquisa rasa em bibliotecas sobre o que era para ela suspeito. Mas divago: quero falar das pesquisas feitas em massa que se parecem com salsichas. Essas que você consome porque são convenientes e aparentam confiabilidade. 

Citação de estudos é o novo pretinho básico: todo mundo tem um no armário para ficar elegante com facilidade. E os estudos citados podem corroborar qualquer coisa. Na área da nutrição, por exemplo, que muitos céticos chamam de pseudociência – com dose de razão, Ben Goldacre considera que nutricionistas são charlatões e até mandou comercializar uma camiseta em que se lê “nutricionista” embaixo da imagem de um pato (quack é “charlatão” em inglês) –, fanáticos por dietas restritivas sempre têm uma lista de estudos na manga comprida da blusa para apresentar caso sejam colocados em dúvida. O erro já começa na alusão ao apocalipse alimentar, mas piora conforme o fanatismo adere a uma corrente específica: açúcar jamais, glúten mata mesmo os não-celíacos, carboidratos são veneno, farinha e arroz são carboidratos cancerígenos, etc. Eu francamente não tenho tempo de analisar os estudos que todo mundo me aponta para justificar sua alimentação restritiva, mas sei que cada iludido consegue arrolar dezenas de “pesquisas honestas” para explicar como vive maravilhosamente bem. Adeptos da dieta paleolítica – que comem basicamente carnes, ovos e plantas – e da dieta crudívora – que comem apenas alimentos crus ou aquecidos somente em baixíssima temperatura – sempre falam em “estudos”. O básico é que as populações mais longevas do mundo não são nem paleolíticas, nem crudívoras: japoneses, por exemplo, comem pouquíssima carne, muito arroz e muitos derivados de soja. Paleolíticos e crudívoros – e os “estudos” que os embasam – querem buscar nos antepassados a alimentação adequada que protege contra doenças e confere vida longa, mas que diabos: desde quando nossos antepassados devem ser modelos literais de saúde? Viviam pouco, tinham que comer o que estava disponível sem cerimônias, podiam não padecer das doenças que nos acometem, mas padeciam de tantas outras. Não, para os profetas do apocalipse alimentar extremo não basta excluir processados, ler rótulos, moderar o que se torna vício (álcool, açúcar, farinha de trigo): é preciso que exista um modo de alimentação tão hermético que funcione como uma religião conservadora. 

Quanto aos estudos sobre os quais não tenho tempo de me debruçar – trabalho 35h semanais, durmo no mínimo 8h por noite, não me resta muito tempo para ficar desafiando e contestando cada lunático que surge com “novidades fundamentadas” –, às vezes uma passada de olhos já denuncia a trapalhada: pesquisas feitas com dez, quinze, trinta pessoas que “revelam” informações na base de “56%, 61%, 63% dos pesquisados” querem dizer o quê? Querem dizer que precisamos de estudos mais aprofundados, com uma amostragem muito maior, para bem julgar os resultados obtidos na prévia. Eu sei, há quem se pense cientista com uma amostragem de uma, duas, três pessoas – “minha mãe não me amamentou e estou vivo até hoje, logo a amamentação é desnecessária”, “bebo água de torneira desde sempre e nunca morri nem adoeci, então essa história de água mineral, de água melhor tratada é coisa do comércio criando demanda”, “na minha casa não compramos orgânicos e não temos problema nenhum com isso, logo provamos que o comércio de orgânicos é apenas um nicho de mercado”, “Bibi Ferreira tem 95 anos, diz que nunca praticou exercícios e bebe Coca-Cola todos os dias; assim concluímos que exercícios físicos são desnecessários e que Coca-Cola não faz mal” –, mas isso fica no terreno coloquial onde o achismo é rei e primeiro-ministro: ninguém chama a colega que infere coisas sobre o universo baseada em sua experiência pessoal de “estudiosa” ou “pesquisadora”. Mas estudos de dois meses feitos com dez pessoas que mostram uma tendência 2% maior de hipertensão no grupo de cinco que comeu pão todos os dias – esses “estudos” entram para a lista do pânico dos que tratam farinha de trigo como heroína. A desgraça, infortunadamente, não fica apenas do lado do pleno leigo que interpreta o que leu na Seção Mundo Bizarro do jornal: há pesquisadores que fazem esses estudos de quintal, concluem coisas e tratam suas realizações como trabalhos sérios e dados prontos. Num planeta globalizado, um débil sempre achará outros débeis maiores para concordar com ele e divulgá-lo. 

Aqui parece que falo apenas da deep web de informações falsas, capengas, aleijadas onde mergulha o grosso de quem tem carência afetiva e precisa achar deuses em todo lugar: o deus político, o deus alimentar – que se manifesta na forma de “o limão é uma panaceia” ou “a linhaça cura diversas doenças” –, o deus opinativo. É um mar onde se nada de escafandro e às vezes se pensa pedir para cortarem o fio. Mas é bom não esquecer dos gigantes, e vou bailá-los brevemente. 

Liberais vivem numa utopia teórica que é quase tão fantasiosa quanto o que a esquerda planeja como paraíso social. Pensam que o Brasil tem competência, responsabilidade e maturidade para liberar porte de armas para todos; acham que numa sociedade de cada um por si necessariamente surgirão associações caritativas criadas pela espontaneidade dos bem-sucedidos, desejosos de ajudar os pobres; creem que há pouquíssimas coisas (ou nada) que o Estado pode prover e incentivar melhor que a livre iniciativa. Nesse último ponto, liberais se referem muitas vezes à atividade dos mecenas da ciência, que patrocinam estudos sobre temas variados e dizem dar liberdade aos pesquisadores para que concluam o que tiver que ser. Quem acredita nesse sistema no qual o pesquisador sabe que seu patrocinador tem interesse em determinados resultados que o beneficiem? Não digo que os pesquisadores são claramente comprados (apesar de achar possível, imagino que isso seja minoritário), mas a mera informação de que o mecenas tem interesse num dado encaminhamento do estudo pode bastar para que tudo seja subjetivamente, inconscientemente, tacitamente conduzido. Um dos pilares mais importantes das principais pesquisas com pessoas é fazer um teste duplo cego: o pesquisado não sabe que hipótese o pesquisador lançou de início e o pesquisador não faz ideia qual pesquisado receberá o que no meio do estudo para testar sua teoria. Se o pesquisador sabe que está dando um placebo para seu pesquisado 1 e que está dando remédio com princípio ativo para o pesquisado 2, ele, pesquisador, pode deixar passar uma expressão, um tom de fala, um modo de frase que entregue para o pesquisado que tipo de reação se espera dele ao tomar a pílula que lhe é dada. Parece rigoroso, mas é apenas um preceito muito elementar que pesa o papel da psicologia na relação entre pesquisador e pesquisado. Se nesse âmbito menor já é tão importante que o estudo seja realizado às cegas, por que não seria importante que um laboratório inteiro não soubesse quem é que está financiando a pesquisa milionária que será iniciada? Laboratórios que recebem baldes de dinheiro dos barões da indústria geralmente sabem quem os financia e sabem que tipo de resultado seria mais benéfico ao financiador. Podem não pensar “vou conduzir essa pesquisa de modo a agradar ao Sr. Nestlé”, mas a avaria moral já se manifesta no momento em que o pesquisador come o fruto da árvore do conhecimento que delata o interesse do mecenas. Há caso pior, é claro, como quando o proveito é escancarado: em ditaduras que dizem financiar a ciência, o cientista é muitas vezes obrigado a servir ao ventríloquo que o move dentro do laboratório. Mas não vejo motivo para terror quando governos livres financiam pesquisas num processo liso, e dependendo da pesquisa prefiro confiar na conclusão de alguém que atendeu a um edital de pesquisa lançado pelo governo a confiar em quem teve financiamento privado. Não só as pequenas pesquisas merecem nosso ceticismo ajuizado (ceticismo desajuizado é o que os eternos conspiradores carregam consigo), mas também as grandes: saber quem financia um estudo pode ser uma informação substancial para manter uma saudável pulga atrás da orelha. Atenção aos autoritários, aos polarizados: eu não disse que pesquisas financiadas por grandes marcas devem ser usadas para concluir o oposto – “se a pesquisa financiada pela Mondelez conclui que chocolate faz bem, é porque chocolate faz mal” –, apenas incentivei o benefício da dúvida comedida até que outro pesquisador possa provar outra coisa ou ratificar o que foi concluído. 

O sentido da metodologia exposta num trabalho acadêmico não é só o de informar sobre a técnica utilizada, mas de possibilitar que a experiência possa ser repetida por outro pesquisador que queira verificar se atinge o mesmo resultado. Usar a mesmíssima metodologia e não alcançar o mesmo alvo, ou um alvo sadiamente próximo, é mau sinal para o estudo publicado. Excetuando pesquisas com forte cunho de análise de dados quantitativos, qual é a medida das produções da área de humanas que passariam pelo teste com tranquilidade? Não só a metodologia está muitas vezes errada como mesmo seguindo os passos tortos da metodologia errada não se chega ao mesmo lugar. Pretenso Pesquisador: "Eis o mapa: foi assim que cheguei ao que denomino Vale do Conhecimento". Possível Replicador: "Interessante, porque o mapa não apenas é mal feito como seguimos os tracejados conforme aqui está e chegamos a um local completamente diferente". É uma realidade assombrosa, mas somente até você se acostumar a ela: se orientadores de trabalhos acadêmicos já esculpiram seu corpo no colchão dessa pesquisa macunaímica de tanto passarem deitados confortavelmente nele, não há razão para o mais comum terrestre não diplomado deixar de normalizar tal situação. 

Em tempo: há muitos textos da área de humanas que são ensaios e não pesquisas acadêmicas, mas são aprovados como pesquisas acadêmicas. O fato de um texto citar alguns livros não o torna uma pesquisa acadêmica. Já há “artigos acadêmicos” sobre “o golpe de 2016 no Brasil”, e em boa parte deles dá para se ter uma ideia da confusão entre ensaio e pesquisa.

O equivalente, na área de humanas, ao cientista de laboratório que se permite guiar pelo benefício de seu financiador (ele nega a influência, mas isso não quer dizer nada), está no pesquisador que prefere causas a fatos. Esse pesquisador, que geralmente atende a apelos políticos, apelos partidários, apelos sentimentais dos movimentos sociais, não deixará que a razão reine naquilo para o qual ele chama primeiro a paixão, tonta porque inebriada por suas convicções de fé. A imparcialidade é fantasma que nunca se agarra, mas é canalhice de muitos pesquisadores "de humanas" não ao menos tentar. Nessa toada, a pesquisa não informa, mas doutrina. Ou seja, não é pesquisa. 

Para se formar, um graduando precisa passar por dezenas de professores. Depois ele passa pelo cansativo estágio e/ou pelo trabalho de conclusão de curso. Quando você vai ao banco de TCCs da biblioteca de uma instituição de ensino e pega aleatoriamente algumas monografias da sua área para ler, pode ficar confuso. Aquilo é pesquisa. Aquilo foi ratificado por pares. Aquilo recebeu uma orientação, passou por uma banca avaliativa e recebeu aprovação. Aquilo pode ser citado em outros trabalhos acadêmicos. Há trabalhos tão ruins que é de se perguntar se a universidade, que deveria priorizar a formação dos melhores pesquisadores e profissionais, está se tornando um novo ensino fundamental público onde qualquer um que não seja completamente absurdo passa para o ano seguinte. Li um trabalho acadêmico, aprovado, em que a conclusão trazia dados novos que não foram apresentados em momento algum do desenvolvimento. Vi uma pessoa que estava para se formar na especialização juntando materiais para poder usar nas referências e inserir as citações no meio do texto que já estava pronto: não houve pesquisa, houve “escrevi o que penso e agora vou intercalar umas citações de renomados que concordem comigo”. Conheci uma pesquisadora cujo trabalho de reunir todos os dados coletados foi por mim observado: de maneira desarrazoada, elementos que não casavam eram unidos e mal interpretados. Pessoas externas ao que estava acontecendo ali receberiam um artigo aparentemente bem feito e de acordo com a época estudada, mas tendo sabido do bastidor eu sei que parte do que foi publicizado era fruto da pressa e da mera lucubração, e não de um estudo feito com calmo capricho. Leio e ouço desde sempre reclamações sobre ter que citar autoridades sobre o assunto, porque os amadores pesquisadores preguiçosos e nada humildes achavam “ridículo que não possamos pensar com nossa própria cabeça e tenhamos que procurar argumentos de autoridade”. Se você acha que citar quem entende mais do assunto que você é uma poda ao direito de pensar com a própria cabeça, saia da faculdade e monte um blog. Num blog você pode dizer o que pensa e não se dignar a responder caso alguém pergunte que tipo de autoridade você é para opinar sobre o assunto. 

Não consumo salsichas justamente porque sei como – e de que – elas são feitas. Por saber que muitos trabalhos acadêmicos têm o modo de produção semelhante ao das salsichas, consumo estudos com muita parcimônia hoje em dia. Infelizmente, mesmo uma pesquisa lindamente bordada pode ter um avesso tenebroso. E é muito arriscado defender qualquer ideia subitamente aparecida num estudo que possa ser suspeita. Estudo por estudo, todo mundo tem os seus preferidos para citar. Até a homeopatia, que é pseudociência evidente, tem diversos estudos (ruins) "comprovando" seus efeitos. Pesquisa acadêmica é também como estatística: dependendo quem fez e com que objetivos, pode ser uma grande furada. É melhor conhecer tudo o que ocorre nos bastidores antes de acreditar na peça que é encenada. 

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NOTAS

1. Esta postagem terá uma parte II chamada Universitários que são manequins

2. Não acho que eu precise me explicar, mas me explico e até me repito. Não aderi ao veganismo por motivo de saúde, aderi por ética. Não me lembro de em nenhuma fase da minha vida não ter gostado de animais (não gostava muito de ganhar bonecas, sempre queria animais de pelúcia), assim como não me lembro de ter gostado de ou me divertido com tortura, que é tudo o que os animais passam antes de irem para pratos de ególatras. Portanto, veganismo não é dieta, como erradamente apregoam Drauzio Varella e reportagens sobre nutrição na televisão. E só aderi ao veganismo porque ele é possível: se fosse uma aberração alimentar que fosse me fazer mal, eu não teria embarcado nessa e iria apenas “comprar carne de produtores que realizam abate humanitário”. Aberração alimentar é comer pedra e fazer jejum enquanto uma fruta não cai naturalmente da árvore. Aberração alimentar e moral é contar para os filhos histórias bonitinhas sobre galinhas, mostrar os pintinhos abrigados embaixo das asas da galinha em um parque qualquer e depois, à noite, servir frango no jantar. 

3. Não demonizo agrotóxicos (não mais). Sei que com o estilo de vida da população geral seria muito difícil ter fartura de alimentos sem o uso deles. Mas não posso aprovar a história de que “orgânicos são apenas nicho de mercado” enquanto no Brasil são permitidos agrotóxicos que estão banidos na Europa há anos e enquanto auditorias flagram abuso na quantidade de agrotóxicos despejada em certas plantações. 

4. Existem casos de estudos aparentemente “sérios dos dois lados”. Não sei muito bem o que pensar sobre o álcool: há quem defenda que com moderação ele faz bem, há quem defenda que qualquer quantidade dele já aumenta o risco de câncer. Para mim seria muito vantajoso que fizesse bem, porque gosto de beber e bebo com moderação, mas li pessoas que estimo condenando essa angelização do “álcool em doses moderadas” porque há estudos que mostram que mesmo a ingestão com prudência faz mal. Mantenho-me aqui, bebendo enquanto não saem estudos definitivos. 

5. A Cochrane Library faz revisões de estudos sobre temas variados e é uma base segura para avaliar a seriedade e profundidade dos resultados de pesquisas. Alguns artigos são de acesso livre.