domingo, 5 de março de 2017

Separar a arte do artista


A notícia do momento é que uma carta assinada por 400 intelectuais pede que Lula considere, “desde já”, a possibilidade de se candidatar à Presidência da República para 2018. Tássia Camargo é uma das que assinam o documento. Não sabia da produção intelectual da atriz, assim como desconheço a imensa maioria dos nomes da intelligentsia brasileira que ratificam o conteúdo da carta. Pode ser apenas muita ignorância minha, já que ignoro tantas coisas. Se nunca ouvi falar dos intelectuais “Flávia Moura Caldas, comerciária”, “Deolinda de Almeida Pantoja, dona de casa” ou “Claudio de Oliveira Ribeiro, pastor evangélico” deve ser porque ando lendo os livros e jornais errados. Pago a assinatura da Folha de S. Paulo para estar bem informada e passo esse vexame ao me deparar com uma lista de nomes alienígenas. Talvez devesse ler o Brasil 247, que tem Renan Calheiros como colunista. 

Dentre os assinantes óbvios está Chico Buarque, que enxerga o mundo com os óculos de um taxista: dicotômico, eterno bandidos versus moços. Diante disso, pergunto-me: 

1. De que serve o conhecimento se ele não puder alterar nossa leitura das coisas? Chico não é nenhum iletrado, mas age como um ao querer salvar Lula de “perseguição política” em nome do combate a figuras da suposta direita brasileira. Seguindo o mesmo jeito de operar estão os que alegam defender entusiastas de torturadores a fim de formar uma forte oposição ao PT. Resumo: existem apenas dois lados, e ou você está aqui, ou está ali, não existe acolá ou outro lugar. O que é, convenhamos, o retrato certo de boa parte dos taxistas. Quando trabalhei com educação infantil, alarmei-me ao ver que muitas pedagogas, formadas pedagogas e pagas com salário de pedagogas, queriam apenas “cuidar” de crianças, levando-as para brincar livremente no parque, deixando que desenhassem o que bem entendessem e interagissem à vontade “desde que não se machucassem”. Para que servia a formação delas se o trabalho que realizavam podia ser feito por uma costureira analfabeta? Deixar crianças passando horas em frente à TV ou correndo pelo parque não exige nenhum conhecimento de Freinet ou Vygotsky: qualquer adulto sem cursos consegue tomar essa responsabilidade e ainda ser menos oneroso à instituição que o emprega. Se o conhecimento não for usado, repito, para que serve? Chico Buarque viveu em lar cheio de livros, com pai erudito, entorno intelectual, escreveu canções primorosas e a lista continua. Isso, infelizmente, não o ensinou nada sobre ponderação política. Suas opiniões nesse campo são primárias, e o bordão “é claro que o PT errou em algumas coisas” – presente na fala de muitos contemporizadores – só serve para que não passe uma imagem de cego completo tomando chuva ao som de Like a fool, do Robin Gibb. Depois do bordão vem um esperado “mas”, e depois da justificativa fajuta vem um “não troco o certo pelo duvidoso, quero Lula de novo”. No fim, o sujeito que quis parecer um analítico minucioso pesando valores na balança estava desde o começo convicto e cimentado em que lado apoiar.

2. A questão principal deste texto: O artista como pessoa deve se confundir com a sua obra? Não sei responder. Certa vez Rodrigo Constantino, perdido em assuntos que não dizem respeito à área econômica, bradou contra a obra de célebres como Chico Buarque por causa de suas opiniões políticas. Disse aos seus leitores que artistas ligados ao PT deveriam ser boicotados. Discordo, mas com ressalvas. Discordo porque apesar de achar aberrante que, em plena era da informação, alguém defenda um claro demagogo como Lula, ignorância e canalhice, não sendo crimes, acabam não sendo tão graves para o boicote de um artista de qualidade. Não me parece justo com o meu coração ter que deixar de ouvir Você vai me seguir porque seu compositor é lulista, e nesse momento separo o Chico opinador do Chico compositor. A ressalva quanto à minha discordância à ideia de Constantino: qual é o limite da separação entre o artista e sua obra? Devo tolerar a obra de um assassino por motivo fútil porque é muito refinada? Devo poder colocar uma das pinturas de Hitler na parede da minha sala porque uma coisa é o homem e outra coisa é a obra? Até agora dei exemplos dos extremos de aceitação “muito fácil” e “muito difícil” – Chico e Hitler –, mas vamos ao meio-termo que gerará alguns “não sei” e “aí você me pegou”: como proceder diante da obra de Roman Polanski, que drogou e estuprou uma adolescente nos anos 70? Eu não lembro de não ter gostado de nenhum filme dirigido por ele. Gostaria que pudesse fazer mais trabalhos como Deus da carnificina (Carnage, 2011), cheio de diálogos, tensão e toques de humor, e O inquilino (Le locataire, 1976), hipnotizante, sombrio e que se assemelha, agradável e estranhamente, a uma experiência literária (que ocorre quando você está vendo um filme e parece estar lendo um livro; o contrário também é possível). Devo negar essas boas obras porque foram pensadas por um estuprador? Outra pergunta pertinente seria: devo julgar uma pessoa inteira por causa de um fato isolado? Também não tenho resposta, porque dependendo do caso a ideia é descabida ou justa. Talvez Polanski não mereça ser condenado a vida inteira por causa de um estupro ocorrido há décadas – talvez deva. E merecerá condenação um autor como Gabriel García Márquez, que foi amigo próximo de Fidel Castro? É possível que alguém advogue em seu benefício dizendo que “não são de nossa carga os crimes que nossos amigos cometem” ou, os mais delirantes, que “mas Fidel só fuzilava para salvar a revolução”. Só que Márquez não apertava mãos e dava tapinhas nas costas no escuro. Enquanto a população vivia somente com o básico racionado, Márquez, na qualidade de amicíssimo, frequentava os paraísos escondidos de Fidel. Márquez via que Fidel nadava em fartura e futilidade enquanto o povo cubano pensava que o comandante só possuía uma casinha simples onde fazia refeições frugais. Perdoamos o escritor colombiano por aceitar tamanha conduta imoral de seu amigo – e por aceitar receber benefícios como uma bela casa em Cuba – ou paramos de ler sua obra para honrar nossos princípios? Eu nem tenho muito o que pensar de Gabo, já que só li um livrinho dele (e não gostei), mas sei que muitas pessoas o veneram pelo que fez em Cem anos de solidão. Se algum leitor brasileiro se espantar com o fato de ele ser íntimo de um ditador e resolver parar de ler e propagar suas obras, isso seria inusitado – atitude que não espero tão incomum para alguém que tivesse fugido de Cuba para os EUA e execrasse o regime socialista no qual vivera até então.

John Lennon batia em sua primeira esposa. James Brown batia em suas esposas. Edmund O. Wilson batia em Mary McCarthy. O que fazemos com suas obras? Se estou num baile de super flashback e depois de Good times, do Chic, tocarem Papa's got a brand new bag, devo me retirar da pista balançando a cabeça e doutrinando “a música desse agressor eu não danço”? Seria fácil fazer isso e ser acompanhada se o agressor tivesse acabado de ser televisionado ou se seu caso estivesse marcado na memória coletiva, mas parar de dançar a música de um homem violento que teve seu auge há muitos anos, está morto e ninguém se lembra que causava problemas domésticos pode ser visto como o ato de “alguém que não está pronta para separar homem e obra”. Nós desculpamos uns, nós punimos em definitivo outros. Que régua mede quem merece estar separado da carreira e quem merece ser arrastado para a vala com ela? Na dúvida, admito, acabo separando o artista da obra. E tento defender minha escolha me convencendo de que não possuo nenhuma garantia de que outros ilustres sentimentais ou renomados literatos não tiveram, na vida privada e secreta, condutas altamente condenáveis. O poeta é um fingidor, e encarando uma magnífica poesia dá-se um jeito de livrar a pele de seu farsante para poder continuar a fruir sua farsa. Também tento me defender dizendo que as pessoas são mais complexas do que suas imperfeições pontuais, mas essa é uma opinião bem flexível e oportunista, pois eu jamais teria em minha cabeceira a grande obra de alguém que tivesse feito mal a um membro da minha família, e eu sei que algum bocado do meu desgosto pelo legado de Hemingway se deve ao fato de ele ser tão devoto do sofrimento animal, seja por meio de touradas ou caçadas por diversão. Já de Almodóvar não consigo não gostar e digo que é ótimo apesar das touradas. Fale com ela (Hable com ella, 2002) só não é um filme perfeito porque o sofrimento do touro e o louvor à cultura da tourada são reais. É fácil dispensar a obra de um imoral que não nos cativa tanto. Quem nos cativa nos tem não obstante muitas coisas, inclusive crimes. 

Admirarei qualquer nobre espírito que, sem querer holofotes e elogios, educadamente saia da pista quando tocarem James Brown. Já alguém parar de sambar porque começou uma música do petista Chico Buarque seria radicalismo. Se um compositor for boicotado por causa de uma opinião partidária infeliz, que meia dúzia de artistas restarão para condizer com nossas expectativas de forma plena? Não separar os homens de suas obras por motivos contornáveis e recusá-los inteiramente por isso só faria aumentar o comércio de arte feita por freiras. Boicotes artísticos inconscientes e rigorosos só servem bem na cabeça de autoritários que se pensam deus. Eu prefiro arte feita por seres humanos que falham.